Um pintassilgo desce pelas escadas

estende o bico para que o canto
não se perca pelo chão. Ainda bem que é
para o céu que ele está a olhar: assim,
não vê os teus cabelos que se espalham
por entre ervas e ramos, nem os teus
braços que se apoiam ao declive da
encosta. No entanto, a tua respiração
canta com ele; e é só quando o vento
o enxota do ramo é que um silêncio
se faz para que, de dentro dele, nasçam o
bater de asas do seu voo e o teu riso, ao
veres um pássaro saltar de dentro do amor.
Nuno Júdice, A Pura Inscrição do Amor
URGENTEMENTE
É urgente o amor
É urgente um barco no mar

ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos, muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas – Até Amanhã
SE EU FOSSE A TI
Se eu fosse a ti amava-me, telefonava,
não perdia tempo, dizia-me que sim.
Não hesitava mais, fugia.
Dava o que tens, o que tenho,
para ter o que dás, o que me darias.
Soltava o cabelo, chorava
de prazer, cantava descalça, dançava,
punha em fevereiro um sol de agosto,
morria de prazer, não punha
nenhum mas a este amor, inventava
nomes e verbos novos, estremecia
de medo perante a dúvida de que fosse
só um sonho, fugia
para sempre de ti, de ali, comigo.
Se eu fosse a ti amava-me.
Dizia-me que sim, vinha
a correr para os meus braços,
ou pelo menos, sei lá, respondia
às minhas mensagens, às minhas tentativas
de saber que é feito de ti, telefonava-me,
que será de nós, dava-me
um sinal de vida, se eu fosse a ti.
Juan Vicente Piqueras, Instruções para Atravessar o Deserto
O PUXADOR DA PORTA DA COZINHA
O puxador da porta da cozinha está estragado
faz um mês. Não passa dia sem que peças
que conserte o puxador
não concebes ser possível eu
sempre ter tido engenho para estas coisas da casa e
ainda não ter tido tempo para compor
o puxador. Mas
não se trata de nada disso. Já
o teria composto (se o
quisesse arranjar
teria arranjado tempo
não me ia custar mesmo nada. Mas
depois ia haver que alfinete encravado na rotina?
Como não estranhar a absurda
ausência da avaria?
Deixa-o
ficar assim. Deixa-o andar assim
(ternamente avariado).
Cada dia pela manhã
Quando passares à cozinha

entre as sete
sete e um quarto sete e meia
e ficares com o
puxador da porta da cozinha na mão
tua voz regressará ao
exaustivo pedido
(ao alívio confortante de essa ser
nossa alegria) e
eu sentir-me-ei feliz por
ainda te ter por perto
por me
fazeres companhia.
João Luís Barreto Guimarães, O Tempo Avança Por Sílabas
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