...para dezembro
A árvore das histórias de Natal
José
Jorge Letria
Contadas
com muita imaginação, ternura, poesia e algum humor, o autor aborda temas
desafiantes como a tolerância, a empatia, o abandono, a pobreza ou a memória de
quem já não está.
O Natal está quase a chegar. Vamos, então, celebrar o espírito natalício com um conto desta coletânea.
A Fava, o Brinde e
o Bolo-Rei
Dentro do enorme
bolo-rei encomendado para a noite de Natal as coisas estavam muito longe de
correr bem. Porquê? Porque a fava e o brinde tinham passado da fase de amuo à
de corte de relações devido às discussões antigas que sempre houvera entre
ambos.
A fava entendia que
o seu papel era, há muito, desvalorizado, fazendo ela, as mais das vezes, o
papel de má da fita. Sempre que alguém partia um dente a trincar uma fatia ou
ficava incomodado por não lhe ter saído o brinde, mesmo que ele fosse
insignificante, o comentário costumava ser:
— Maldita fava, que
não está aqui a fazer nada, que só causa problemas e que, ainda por cima, nem
serve para ser comida.
Por isso, a fava
exigira já ao pasteleiro que a embelezasse, revestindo-a, por exemplo, de
chocolate, o que sempre poderia torná-la mais apetecível e menos desprezada.
Mas o pasteleiro recusara-se a fazê-lo, em nome de uma velha tradição de que se
sentia guardião.
Por
sua vez, o brinde, que se encontrava numa posição favorável, sendo sempre o
mais procurado no bolo-rei, juntamente com algumas frutas cristalizadas, achava
que aquilo que se gastava com a compra bem podia ser aplicado na melhoria da
sua qualidade.
Queria,
por exemplo, deixar de ser feito em metal barato, do género que escurece e
enferruja rapidamente, e passar a ser feito em prata, o que lhe daria o direito
de não ser atirado para o fundo de uma caixa esquecida num sótão, ou mesmo para
o caixote do lixo.
Em
relação a esta exigência também o pasteleiro não se mostrava disposto a ceder,
afirmando, por exemplo:
—
Se eu fizesse o que me pedes, o brinde sairia muito mais caro do que o
bolo-rei.
Eram
estes problemas que se encontravam na origem das discussões e dos conflitos a
que o pasteleiro se sentia incapaz de pôr termo. Por isso pediu a intervenção
da Fada do Natal, com o objectivo de a levar a pôr um pouco de bom senso nas
cabeças da fava e do brinde.
A
Fada do Natal apareceu na cozinha sem aviso e encontrou a fava e o brinde muito
amuados, cada um para seu canto, recusando-se a entrar naquele bolo-rei e, por
sua vez, o pasteleiro desesperado a desabafar:
—
Se eles se recusarem a colaborar, eu não poderei satisfazer a minha encomenda
e, assim, uma família grande passará a noite de Natal sem o bolo-rei que tanto
deseja.
Ao
escutar esta queixa, a Fada do Natal tomou uma decisão inesperada: puxou da sua
varinha mágica e transformou o brinde em fava e a fava em brinde, medida que
deixou ambos completamente confusos e sem saberem o que haviam de dizer.
Aproveitando
o silêncio da fava que agora era brinde e do brinde que agora era fava, o
pasteleiro pôs os dois dentro do bolo-rei, ainda em fase de massa mole, e
meteu-o dentro do forno. De lá de dentro saíam vozinhas dizendo coisas do
género: “Mas que grande confusão. Ainda há pouco tinha forma de fava e agora
olho para mim e vejo um brinde prateado” ou “ando eu a pedir para me fazerem em
prata e agora não passo de uma rija e triste fava”.
O
pasteleiro sentiu uma grande vontade de rir com a confusão que a sua amiga Fada
do Natal acabara de criar para o ajudar e por achar inútil toda aquela
discussão que prometia arrastar-se para além do que era razoável.
—
Obrigado, Fada do Natal, pela preciosa ajuda que me deste. O que posso agora
fazer para te compensar? — disse o pasteleiro.
—
É simples. Faz chegar o bolo-rei ao seu destino, para que aqueles que o esperam
não sejam prejudicados e, se tiveres outros bolos-reis que ninguém tenha
comprado, fá-los chegar às mãos daqueles que não têm casa nem família —
respondeu a Fada do Natal.
—
Então a fava e o brinde?
—
Ficarão assim até perceberem que, vistas do outro lado, as coisas são sempre
diferentes do que imaginámos. Talvez assim se acalmem e deixem de te causar
problemas inúteis.
José Jorge Letria
A Árvore das
Histórias de Natal
Porto, Ambar, 2006
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