CHICO
BUARQUE
(1944/)
Francisco
Buarque de Hollanda, mais conhecido como Chico Buarque,
nasceu no Rio de Janeiro em 1944. Compositor, cantor e ficcionista, é um dos
mais célebres e admirados artistas de língua portuguesa.
Publicou
várias peças de teatro, entre as quais a Ópera do Malandro, e uma novela
antes de se estrear no romance, em 1991, com Estorvo, pelo qual recebeu
o Prémio Jabuti, o mais importante prémio literário
no Brasil. Seguiram-se Benjamim (1995), Budapeste (2003) e
Leite Derramado (2009), estes dois últimos distinguidos também com o
Prémio Jabuti para melhor romance do ano. Os últimos romances editados são O
Irmão Alemão (2014) e Essa gente (2019).
Todos
os seus romances estão publicados em Portugal pela Companhia das Letras, assim
como Tantas Palavras, um livro que reúne todas as suas letras
acompanhadas por um retrato biográfico escrito por Humberto Werneck.
Em
2019 Chico Buarque viu a sua obra literária reconhecida com a atribuição do
Prémio Camões, a mais alta distinção para autores de língua portuguesa.
Devia
ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira. Certa manhã,
ao deixar o metrô por engano numa estação azul igual à dela, com um nome
semelhante à estação da casa dela, telefonei da rua e disse: aí estou chegando
quase. Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira, porque a professora
me pediu para repetir a sentença. Aí estou chegando quase... havia provavelmente
algum problema com a palavra quase. Só que, em vez de apontar o erro, ela me
fez repeti-lo, repeti-lo, repeti-lo, depois caiu numa gargalhada que me levou a
bater o fone. Ao me ver à sua porta teve novo acesso, e quanto mais prendia o
riso na boca, mais se sacudia de rir com o corpo inteiro.
Disse enfim ter entendido que eu chegaria
pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha, depois um joelho, e a piada
nem tinha essa graça toda.
Tanto é verdade que em seguida Kriska ficou
meio triste e, sem saber pedir desculpas, roçou com a ponta dos dedos meus
lábios trêmulos. Hoje, porém, posso dizer que falo o húngaro com perfeição, ou
quase. Quando de noite começo a murmurar sozinho, a suspeita de um ligeiríssimo
sotaque aqui e ali muito me aflige. Nos ambientes que frequento, onde discorro
em voz alta sobre temas nacionais, emprego verbos raros e corrijo pessoas
cultas, um súbito acento estranho seria desastroso.
Para tirar a cisma, só posso recorrer a
Kriska, que tampouco é muito confiável; a fim de me segurar ali comendo em sua
mão, como talvez deseje, sempre me negará a última migalha. Ainda assim, volta
e meia lhe pergunto em segredo: perdi o sotaque? Tinhosa, ela responde: pouco a
pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha... E morre de rir, depois se arrepende,
passa as mãos no meu pescoço e por aí vai.
Fui dar em Budapeste graças a um pouso
imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio. A
companhia ofereceu pernoite num hotel do aeroporto, e só de manhã nos
informariam que o problema técnico, responsável por aquela escala, fora na
verdade uma denúncia anônima de bomba a bordo. No entanto, espiando por alto o
telejornal da meia-noite, eu já me intrigara ao reconhecer o avião da companhia
alemã parado na pista do aeroporto local.
Chico
Buarque, Budapeste, D. Quixote,14º ed.,2011
Chico
Buarque | Caravanas Ao Vivo (Show Completo)
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