segunda-feira, 11 de maio de 2020

Escritor do mês | maio


CHICO BUARQUE
(1944/)


Francisco Buarque de Hollanda, mais conhecido como Chico Buarque, nasceu no Rio de Janeiro em 1944. Compositor, cantor e ficcionista, é um dos mais célebres e admirados artistas de língua portuguesa.


Publicou várias peças de teatro, entre as quais a Ópera do Malandro, e uma novela antes de se estrear no romance, em 1991, com Estorvo, pelo qual recebeu o Prémio Jabuti, o mais importante prémio literário no Brasil. Seguiram-se Benjamim (1995), Budapeste (2003) e Leite Derramado (2009), estes dois últimos distinguidos também com o Prémio Jabuti para melhor romance do ano. Os últimos romances editados são O Irmão Alemão (2014) e Essa gente (2019).

Todos os seus romances estão publicados em Portugal pela Companhia das Letras, assim como Tantas Palavras, um livro que reúne todas as suas letras acompanhadas por um retrato biográfico escrito por Humberto Werneck.

Em 2019 Chico Buarque viu a sua obra literária reconhecida com a atribuição do Prémio Camões, a mais alta distinção para autores de língua portuguesa.




Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira. Certa manhã, ao deixar o metrô por engano numa estação azul igual à dela, com um nome semelhante à estação da casa dela, telefonei da rua e disse: aí estou chegando quase. Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira, porque a professora me pediu para repetir a sentença. Aí estou chegando quase... havia provavelmente algum problema com a palavra quase. Só que, em vez de apontar o erro, ela me fez repeti-lo, repeti-lo, repeti-lo, depois caiu numa gargalhada que me levou a bater o fone. Ao me ver à sua porta teve novo acesso, e quanto mais prendia o riso na boca, mais se sacudia de rir com o corpo inteiro.

 Disse enfim ter entendido que eu chegaria pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha, depois um joelho, e a piada nem tinha essa graça toda.

Tanto é verdade que em seguida Kriska ficou meio triste e, sem saber pedir desculpas, roçou com a ponta dos dedos meus lábios trêmulos. Hoje, porém, posso dizer que falo o húngaro com perfeição, ou quase. Quando de noite começo a murmurar sozinho, a suspeita de um ligeiríssimo sotaque aqui e ali muito me aflige. Nos ambientes que frequento, onde discorro em voz alta sobre temas nacionais, emprego verbos raros e corrijo pessoas cultas, um súbito acento estranho seria desastroso.

Para tirar a cisma, só posso recorrer a Kriska, que tampouco é muito confiável; a fim de me segurar ali comendo em sua mão, como talvez deseje, sempre me negará a última migalha. Ainda assim, volta e meia lhe pergunto em segredo: perdi o sotaque? Tinhosa, ela responde: pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha... E morre de rir, depois se arrepende, passa as mãos no meu pescoço e por aí vai.

Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio. A companhia ofereceu pernoite num hotel do aeroporto, e só de manhã nos informariam que o problema técnico, responsável por aquela escala, fora na verdade uma denúncia anônima de bomba a bordo. No entanto, espiando por alto o telejornal da meia-noite, eu já me intrigara ao reconhecer o avião da companhia alemã parado na pista do aeroporto local.

Chico Buarque, Budapeste, D. Quixote,14º ed.,2011

Chico Buarque | Caravanas Ao Vivo (Show Completo)


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