Ana
Margarida de Carvalho
«Nunca me disseram "escreve, escreve". Mas disseram-me várias
vezes "lê, lê". E acredito muito que ler pode ser uma experiência
vital, mais importante do que a maioria dos encontros que tivemos com pessoas
reais são aqueles que tivemos com o capitão Ahab ou com o Hamlet.»
Ana
Margarida de Carvalho
Ana
Margarida de Carvalho nasceu em Lisboa e é licenciada em Direito pela Faculdade
de Direito da Universidade Clássica de Lisboa.
Vencedora
do Grande Prémio de Romance e Novela APE com o seu romance de estreia,
"Que Importa a Fúria do Mar" (livro que tinha sido finalista do
Prémio Leya), publicado em 2013, pela Teorema, no ano passado publicou, na
mesma editora, o romance "Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato".
Além de, com apenas dois títulos, se ter firmado como um dos nomes mais seguros
da ficção portuguesa, ao longo dos anos assinou reportagens que lhe valeram
sete dos mais prestigiados prémios do jornalismo português, entre os quais o
Prémio Gazeta Revelação do Clube de Jornalistas de Lisboa, do Clube de
Jornalistas do Porto ou da Casa de Imprensa.
Filha
do também escritor Mário de Carvalho, Ana Margarida exerceu a atividade
jornalística em publicações como as revistas "Ler" e “Visão”, o
"Jornal de Letras" ou a "Marie Claire", e colaborou ainda
com a SIC.
Lecionou
workshops de Escrita Criativa, foi jurada em vários concursos oficiais e
festivais cinematográficos e é autora de reportagens reunidas em coletâneas, de
crónicas, de guiões subsidiados pelo ICA e de uma peça de teatro.
BIBLIOGRAFIA
"Que
Importa a Fúria do Mar" (2013)
História que cruza a geração dos resistentes ao
fascismo com a que cresceu em democracia.
“Não se Pode Morar
nos Olhos de Um Gato” (2016)
Passa-se
no Brasil, nos finais do século XIX.
«É um
livro sobre
alteridade. Sobre a dificuldade em nos colocarmos na pele daquele que está em
posição desfavorável. Sobre a facilidade com que julgamos o outro com base na
cor da pele, na aparência física e intelectual, na ascendência social – ou
seja, julgamos o outro com base naquilo que somos. E isso nunca pode dar bons
resultados. E depois acontecem imensas coisas.»
Olhem, que vos digo eu, a
iniludível providência na queda de um pardal. Ou de outro pássaro qualquer. O
céu que se abate debaixo dos nossos pés, tumulto impávido, que vos digo eu, mulher
de pau invertida, ao mar arremessada. Olhem os meus peitos rasos de donzela por
entre um rasgão nas vestes, molho de trapos insuflados, Ofélia louca e
desgrenhada, as minhas pernas de idosa, ao alto, encardidas dos séculos e do
unto baboso dos dedos de tantos homens, que as percorreram lascivos de devoção,
que aqui largaram as marcas abertas de pus e sangue, a deixar um lastro de fel
por minhas coxas acima, olhem, que vos digo eu, o último olhar lânguido que
lhes deita um moribundo… Ai, dona fea, fostes-vos queixar que vos nunca louvo
em meu cantar… Olhem as minhas pernas de santa de pau embarcada, polidas por
plaina diligente, insistente, que nunca nenhum homem as conseguiu apartar,
firmes, profanadas apenas pelos bichos que se enterram e consomem, valho-lhes
mais a eles, velha, sandia e carunchosa, do que aos penitentes que me rogam
louvores e preces, a remoerem queixumes mal anoitecidos debaixo de línguas
pútridas, indecentes. Bebam daí a vossa sorte, pelas sete dores de Maria, pelas
sete vagas do mar.
Ana Margarida de
Carvalho, NÃO SE PODE MORAR NOS OLHOS DE UM GATO, Teorema, cap. I, pág. 9
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