ÁLVARO DE CAMPOS
Heterónimo de FERNANDO PESSOA
Álvaro de Campos é um dos heterónimos mais conhecidos, verdadeiro alter ego do escritor português Fernando Pessoa, que fez uma biografia para cada uma das suas personalidades literárias, a que chamou heterónimos.
Caricatura de Vasco
Engenheiro naval
Nasceu: 15 de
Outubro de 1890 à 1.30 da tarde.
Local: Tavira – Portugal
Local: Tavira – Portugal
Álvaro de Campos é um engenheiro
naval estrangeirado e deprimido que, de acordo com o seu criador, «Nasceu
em Tavira da Serra Grande, teve uma educação exemplar de Liceu; depois foi para
Glasgow, Escócia, estudar engenharia naval. Numas férias fez a viagem ao
Oriente Médio de onde resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em
inatividade.»
_______________________________
In Carta a Adolfo Casais Monteiro
- 13 Jan. 1935, dando notícias do nascimento de Álvaro de Campos
No dia em que se comemoram 125 anos sobre o nascimento do poeta Álvaro de Campos, publicamos três dos seus poemas.
DOBRADA À MODA DO PORTO
Um
dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me
o amor como dobrada fria.
Disse
delicadamente ao missionário da cozinha
Que
a preferia quente,
Que
a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se
comigo.
Nunca
se pode ter razão, nem num restaurante.
Não
comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E
vim passear para toda a rua.
Quem
sabe o que isto quer dizer?
Eu
não sei, e foi comigo...
(Sei
muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular
ou público, ou do vizinho.
Sei
muito bem que brincarmos era o dono dele.
E
que a tristeza é de hoje).
Sei
isso muitas vezes,
Mas,
se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada
à moda do Porto fria?
Não
é prato que se possa comer frio,
Mas
trouxeram-mo frio.
Não
me queixei, mas estava frio,
Nunca
se pode comer frio, mas veio frio.
© ÁLVARO DE
CAMPOS
In Poesias
de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa, 1944
Ed. Ática,
Lisboa (imp. 1993)
LISBON REVISITED
(1923)
Não: não
quero nada
Já disse que
não quero nada.
Não me
venham com conclusões!
A única
conclusão é morrer.
Não me
tragam estéticas!
Não me falem
em moral!
Tirem-me
daqui a metafísica!
Não me
apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências
(das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das
ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz
eu aos deuses todos?
Se têm a
verdade, guardem-na!
Sou um
técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso
sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o
direito a sê-lo, ouviram?
Não me
macem, por amor de Deus!
Queriam-me
casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o
contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse
outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como
sou, tenham paciência!
Vão para o
diabo sem mim,
Ou deixem-me
ir sozinho para o diabo!
Para que
havemos de ir juntos?
Não me
peguem no braço!
Não gosto
que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que
sou sozinho!
Ah, que
maçada quererem que eu seja de companhia!
Ó céu azul —
o mesmo da minha infância —
Eterna
verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo
ancestral e mudo,
Pequena
verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa
revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me
dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em
paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto
tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
© ÁLVARO DE
CAMPOS
1923
In Poesias
de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa, 1944
Ed. Ática,
Lisboa (imp. 1993)
MAGNIFICAT
Quando é que
passará esta noite interna, o universo,
E eu, a
minha alma, terei o meu dia?
Quando é que
despertarei de estar acordado?
Não sei. O
sol brilha alto,
Impossível
de fitar.
As estrelas
pestanejam frio,
Impossíveis
de contar.
O coração
pulsa alheio,
Impossível
de escutar.
Quando é que
passará este drama sem teatro,
Ou este
teatro sem drama,
E recolherei
a casa?
Onde? Como?
Quando?
Gato que me
fitas com olhos de vida, quem tens lá no fundo?
É esse! É
esse!
Esse mandará
como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será
dia.
Sorri, dormindo,
minha alma!
Sorri, minha
alma, será dia!
© ÁLVARO DE
CAMPOS
7-11-1933
In Poesias
de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa, 1944
Ed. Ática,
Lisboa (imp. 1993)
Sem comentários:
Enviar um comentário