sexta-feira, 29 de março de 2019

MARÇO|MÊS DA POESIA


PALAVRAS SÉRIAS

Espera-me ao fundo da rua
Que eu não demoro um segundo:
Habituei-me a ter medo
Das bocas más que há no mundo!
Falam de tudo e aproveitam
As aparências ligeiras
De coisas que são às vezes,
Palermices, brincadeiras,
Razões de pássaro tonto,
Ou bilha que se partiu
Quando se enchia na fonte
Talvez a pensar no rio
De água triste e abandonada
Pelas cachopas da aldeia
Que vão mais longe lavar?
Não dou ouvidos a nada:
Quem quiser pode falar:
Tu és sempre o meu amor;
És a minha maré-cheia
E eu este escravo do mar!

António Botto, Poesia


O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros, Poesia Completa



CONVIDA-ME SÓ PARA JANTAR
E não queiras depois fazer amor.
Convida-me só para jantar
num restaurante sossegado
numa mesa de canto
e fala devagar
e fala devagar
eu quero comer uma sopa quente
não quero comer mariscos
os mariscos atravancam-me o prato
e estou cansada para os afastar
fala assim devagar
devagar
não é preciso dizeres que sou bonita
mas não me fales de economia e de política
fala assim devagar
devagar
deita-me o vinho devagar
quando o meu copo já estiver vazio.
Estou convalescente
sou convalescente
não é preciso que o percebas
mas por favor não faças força em mim.
Fala, estás-me a dar de jantar
estás-me a pôr recostada à almofada
estás-me a fazer sorrir ao longe
fala assim devagar
devagar
devagar.

Ana Goês, 366 Poemas que Falam de Amor


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