quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Escritor do mês | novembro

ALBERTO S. SANTOS
(1967/)


Alberto S. Santos é autor, advogado e conferencista. Apaixonado pelos factos inesperados da História, afirmou-se na ficção histórica criada a partir de marcantes acontecimentos reais, mas pouco conhecidos do grande público. Publicou os romances A Escrava de Córdova (2008), A Profecia de Istambul (2010), O Segredo de Compostela (2013), Para lá de Bagdad (2016) e Amantes de Buenos Aires (2019). É também autor da coletânea de histórias A Arte de Caçar Destinos (2017) e participa na série de contos de autores lusófonos Roça Língua (2014). Está ainda ligado à criação e curadoria do Festival Literário “Escritaria” e à comissão científica da “Rota do Românico”.


A Escrava de Córdova 

A Escrava de Córdova segue a vida de Ouroana, uma jovem cristã em demanda pela liberdade e pelo seu lugar especial no mundo. Confrontada com as adversidades do tempo em que lhe foi concedido viver, e em nome do coração, a jovem terá de questionar a educação, as convicções e a fé que sempre orientaram a sua existência. Será, por entre a efervescência das mesquitas e o recato das igrejas graníticas da sua terra, que a revelação por que tanto almeja a iluminará.

(…) Múnio era conhecido pelo cognome o Gasco,  por ser oriundo da Gasconha e ter chegado, anos antes, às terras de Anégia, nas margens do Douro, que apresurou para si. O próprio rei se apressou a outorgar-lhe qualidade de governador, interessado no estabelecimento da sua autoridade na fronteira com os mouros. No final do conciliábulo, solicitou ao abade Rosendo uma audiência a sós. O scriptorium do mosteiro acolheu-os, dando-lhes a privacidade de que necessitavam. Ali se encontravam vários livros, o orgulho daquele ancião. Uns, trazidos pelos moçárabes andalusinos das oficinas livreiras de Córdova; outros, pelos peregrinos de santiago; outros ainda recolhidos com muito zelo pelo abade, durante as inúmeras viagens feitas ao longo da sua vida, como era o caso das obras de padres antigos oriundas de França e de Itália. Viam-se também livros de Isidoro, Leandro, Ildefonso, Taio e Beda, o Venerável.

O governador de Anégia, um dos poucos nobres que, na idade juvenil, aprendera a ler num mosteiro, fixou a sua atenção numa das secções da biblioteca daquele que fora, em tempos, bispo das dioceses de Dume-Mundoñedo e de Santiago. Encontravam-se ali separados livros que o conde não contava ver, alguns deles de que nem sequer suspeitava existirem. Ricamente encadernados, exibiam-se uma Crónica Moçárabe, uma Crónica Profética, uma Crónica de Afonso III, um livro de João Toledo, uma cópia do Libellus de Antichristo, de Adson de Montierender e uma edição de Comentários ao Apocalipse, do Beato de Liébana, entre outros livros que Múnio não conseguiu identificar. Abade... Que estranhas obras se encontram aqui.... Interessais-vos, por acaso, por algumas das ideias que já ouvi..., de que o mundo vai acabar...?! Um sorriso aberto pairou, durante algum tempo, nos lábios daquele ancião já de costas curvadas pelo peso dos anos, enquanto as suas mãos trémulas acariciavam as lombadas dos seus amados livros.

Vejo que és muito perspicaz, meu filho. De facto, tenho estado a recolher informações sobre essas questões. Estou preocupado com algumas correntes que apregoam que o fim dos tempos está próximo. Por isso, ao longo dos anos, tenho coleccionado os livros que têm tratado esse assunto. E que dizem eles? Bom..., muitas coisas... Já que estás interessado no tema, senta-te nesse escabelo e escuta, que eu resumo-te o essencial, respondeu-lhe o venerando abade, dirigindo-se em passo cansado para o topo de uma mesa quadrada feita em madeira de carvalho, onde se sentou em frente ao anegiense. Não era aquela a razão por que Múnio pretendia falar a Rosendo, mas ficou muito entusiasmado por poder receber os ensinamentos daquele sábio vivo.

O Bispo Julião de Toledo dedicou-se à elaboração de laboriosos cálculos sobre o final dos tempos. Com a chegada dos muçulmanos e de algumas pestes ao nosso território, os cristãos moçárabes começaram, por sua vez, a preocupar-se com o fim da dominação dos infiéis. Por isso, na sua Crónica Moçárabe previa-se que no ano 6000 da criação do Mundo, o fim da sexta e última idade do Mundo, que corresponde ao ano 800 depois de Cristo, os muçulmanos seriam expulsos destas terras. Também o Beato de Liébana, que viveu na segunda metade do século VIII, acreditava que a Parusia ocorreria nessa ocasião, como se vê nos seus Comentários ao Apocalipse. Este livro está ilustrado com várias iluminuras e desenhos retratando a sua visão das convulsões e catástrofes que antecederiam o regresso de Cristo, no final dos tempos. Como tal não aconteceu, o tema foi retomado no ano 883, através da Crónica Profética e da Crónica de Afonso III, também elas escritas por moçárabes. Estes assinalaram o ano seguinte como aquele em que terminaria o castigo dos Godos pelos seus pecados e a consequente expulsão dos árabes. Convencido de tais profecias, o rei Afonso III enviou, então, um emissário a Córdova propondo a paz ao califa Muhammad I e solicitando autorização para trazer as relíquias de Santo Eulógio e de outros mártires moçárabes para Oviedo». 

In Alberto S. Santos, A Escrava de Córdova, Porto Editora, 2008

Um poema

No centenário de nascimento de Jorge de Sena


Poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta e tradutor, um dos mais relevantes escritores do século XX, Jorge de Sena nasceu a 2 de novembro de 1919.

«ODE AOS LIVROS QUE NÃO POSSO COMPRAR»

Hoje, fiz uma lista de livros, e não tenho dinheiro para os poder comprar.

É ridículo chorar falta de dinheiro
para comprar livros,
quando a tantos ele falta para não morrerem de fome.

Mas também é certo que eu vivo ainda pior
do que a minha vida difícil,
para comprar alguns livros

sem eles, também eu morreria de fome,
porque o excesso de dificuldades na vida,
a conta, afinal certa, de traições e portas que se fecham,
os lamentos que ouço, os jornais que leio,
tudo isso eu tenho de ligar a mim profundamente,
através de quanto sentiram, ou sós, ou mal-acompanhados,
alguns outros que, se lhe falasse,
destruiriam sem piedade, às vezes só com o rosto,
quanta humanidade eu vou pacientemente juntando,
para que se não perca nas curvas da vida,
onde é tão fácil perdê-la de vista, se a curva é mais rápida.

Não posso nem sei esquecer-me de que se morre de fome,
nem de que, em breve, se morrerá de uma fome maior,
do tamanho das esperanças que ofereço ao apagar-me,
ao atribuir-me um sentido, uma ausência de mim,
capaz de permitir a unidade que uma presença destrói.

Por isso, preciso de comprar alguns livros,
uns que ninguém lê, outros que eu próprio mal lerei,
para, quando se me fechar uma porta, abrir um deles,
folheá-lo pensativo, arrumá-lo como inútil,
e sair de casa, contando os tostões que me restam,
a ver se chegam para o carro eléctrico,
até outra porta.

Jorge de Sena, 1944

O Leituras sugere...







Está uma cobra na minha escola!
David Walliams/Tony Ross

Uma história hilariante para os leitores mais jovens 


Está uma cobra na minha escola!, o mais recente livro de David Walliams publicado, é uma narrativa delirante de Walliams brilhantemente ilustrado pelo premiado artista Tony Ross. 

Quando o Professor Alegre disse a todas as crianças que tinha chegado o Dia de Trazer o Animal de Estimação para a Escola não estava a contar que Miranda trouxesse uma cobra. Uma enorme e serpenteante jiboia de estimação que rapidamente se transforma na grande atração da turma! Pelo menos até à chegada da professora Fiúza, que não gostava muito de animais… nem de crianças.


Cheio de peripécias divertidas, este livro vai fazer as delícias dos mais pequenos (dos 3 aos 5 anos)! 




Desde a publicação de Campeão de Saias, David Walliams escreveu já mais de 15 títulos para os mais jovens, das mais variadas extensões, e transformou-se numa das referências no que diz respeito à literatura juvenil: os seus livros venderam mais de 17 milhões de exemplares e estão traduzidos em mais de 46 línguas.

Foi também distinguido em três ocasiões com o único prémio inglês decidido por crianças, o The Red House Children’s Book Award.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Sophia de Mello Breyner Andresen - 100 anos

(Porto, 6 de novembro de 1919 — Lisboa, 2 de julho de 2004)


Faz hoje 100 anos que nasceu Sophia de Mello Breyner Andresen, uma das mais importantes poetas do século XX português. 

Sophia de Mello Breyner Andresen foi condecorada três vezes pela República Portuguesa e distinguida com 13 prémios literários, entre outros galardões. A poeta morreu dez dias antes de receber a Medalha de Honra do Presidente do Chile, por ocasião do centenário do nascimento de Pablo Neruda. O Prémio Rainha Sofia de Espanha, em 2003, foi o último galardão que recebeu em vida, de uma lista iniciada em 1964, quando recebeu o Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores, pelo livro "Canto Sexto". Em 1977, "O Nome das Coisas" vale-lhe o Prémio Teixeira de Pascoaes e, em 1984, a Associação Internacional de Críticos Literários entregou-lhe o Prémio da Crítica pela totalidade da obra. Em 1989, foi distinguida com o Prémio D. Dinis pelo livro de poesia "Ilhas", Grande Prémio de Poesia Inasset/Inapa, no ano seguinte. Em 1992, voltou a ser premiada pela totalidade da obra, desta feita, com o Grande Prémio Calouste Gulbenkian para Crianças. Em 1994, a Associação Portuguesa de Escritores outorgou-lhe o Prémio 50 anos de Vida Literária e, em 1996, foi homenageada no Carrefour des Litératures (França), um ano depois de ter sido distinguida com o Prémio Petrarca pela Associação de Editores Italianos. Em 1998, pelo seu livro "O búzio de cós" recebeu o Prémio Luís Miguel Nava. 
Em 1999, foi distinguida com o Prémio Camões.


A minha vida é o mar o abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada

Sophia de Mello Breyner Andresen


Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem.

Sophia de Mello Breyner Andresen

EM TODOS OS JARDINS

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Liberdade

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

Sophia de Mello Breyner Andresen