sábado, 28 de março de 2015

EVOCAÇÃO E HOMENAGEM














Herberto Helder (23 de novembro de 1930, Funchal/23 de março de 2015, Cascais)

que eu aprenda tudo desde a morte,
mas não me chamem por um nome nem pelo uso das coisas,
colher, roupa, caneta,
roupa intensa com a respiração dentro dela,
e a tua mão sangra na minha,
brilha inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha,
no toque entre os olhos,
na boca,
na rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas,
fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra,
o canto comum-de-dois,
o inexaurível,
o quanto se trabalha para que a noite apareça,
e à noite se vê a luz que desaparece na mesa,
chama-me pelo teu nome, troca-me,
toca-me
na boca sem idioma,
já te não chamaste nunca,
já estás pronta,
já és toda

Herberto Helder, de A Faca não Corta o Fogo,
 Poemas Completos, Porto Editora, 2014 













Tomas Tranströmer (15 de abril de 1931, Estocolmo, Suécia/ 26 de março de 2015), Prémio Nobel da Literatura de 2011

Lisboa

No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam nas
calçadas íngremes.
Havia lá duas cadeias. Uma era para ladrões.
Acenavam através das grades.
Gritavam que lhes tirassem o retrato.

“Mas aqui!”, disse o condutor e riu à sucapa como se cortado ao meio,
“aqui estão políticos”. Vi a fachada, a fachada, a fachada
e lá no cimo um homem à janela,
tinha um óculo e olhava para o mar.

Roupa branca no azul. Os muros quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde perguntei a uma senhora de Lisboa:
“será verdade ou só um sonho meu?”

Tomas Tranströmer , 21 Poetas Suecos, Vega, 1987

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