quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Um poema...

ARTE POÉTICA 

o poema não tem mais que o som do seu sentido, 
a letra p não é a primeira letra da palavra poema, 
o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma, 
poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva 
fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil 
árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura 
de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes 
e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não 
se escrevem, Lê-se país e mar e céu esquecido e 
memória, lê-se silêncio, sim tantas vezes, poema lê-se silêncio, 
lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu 
olhar doce de menina, silêncio ao domingo entre as conversas, 
silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio 
de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema 
calado, quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, em 
segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem. 
o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz, 
a letra p não é a primeira letra da palavra poema, 
o poema é quando eu podia dormir à tarde nas férias 
do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu 
fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não 
conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a 
letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do 
quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel 
e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas 
e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças 
e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre e tudo. 
o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama 
poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de 
si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para 
abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo 
o que quero aprender se o que quero aprender é tudo, 
é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento, 
não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são 
bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a 
raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos 
conhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é um 
torrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre 
os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema 
porque a palavra poema é um palavra, o poema é a 
carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre 
os telhados na hora em que todos dormem, é a última 
lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança. 
o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos, 
tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se 
com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e 
incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, 
a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo 
para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por 
mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares 
onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos, 
o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me 
olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a 
palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido. 

José Luís Peixoto, A Criança em Ruínas 


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